Por Lia Sarti
Advogada-Sócia do escritório Amir Sarti Advogados Associados, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestranda em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, tendo como linha de pesquisa as tutelas para a efetivação dos direitos transindividuais. E-mail: liasarti@amirsarti.adv.br
Resumo
O presente trabalho busca discutir, primordialmente, a inconstitucionalidade da Medida de Arrolamento Administrativo de Bens, instituída pela Lei nº 9.532/1997, que autoriza à Administração Pública arrolar os bens de eventual sujeito passivo tributário, até mesmo sem a prévia constituição do crédito tributário e sem prazo de manutenção, como se os efeitos da providência pudessem durar eternamente. Tendo em vista as características que informam o processo administrativo fiscal e as garantias fundamentais do contribuinte, parece que a medida examinada acaba por ferir tais garantias, notadamente o direito ao processo administrativo fiscal, ao devido processo legal e à razoável duração do processo.
Palavras-chave: garantias do contribuinte; inconstitucionalidade; medida cautelar administrativa; processo administrativo fiscal.
Abstract
The present work seeks to discuss, primarily, the unconstitutionality of the Measure of Administrative Settlement of Assets, established by Law 9,532 / 1997, which authorizes the Public Administration to list the assets of eventual taxable taxpayer, even without the prior constitution of the tax credit and Without maintenance, as if the effects of providence could last forever. In view of the characteristics which inform the administrative tax procedure and the taxpayer’s fundamental guarantees, it appears that the measure examined would ultimately jeopardize such guarantees, notably the right to administrative tax proceedings, due process of law and the reasonable duration of the proceedings.
Keywords: Guarantees of the taxpayer; unconstitutionality; Administrative precautionary measure; Administrative tax procedure.
1 Introdução
A medida de arrolamento administrativo dos bens nada mais é que uma relação, um inventário, uma lista de todos os bens de eventual sujeito passivo de obrigação tributária, elaborada pela autoridade fiscal com o principal objetivo de facilitar a penhora de bens no caso da propositura de execução fiscal (MACHADO, 1998).
Instituída pela Lei nº 9.532/1997, a medida permite à Fazenda Pública o arrolamento administrativo dos bens independentemente da constituição do crédito tributário (CAIS, 2006), atribuindo ao suposto devedor a obrigação de comunicar à autoridade fazendária a alienação ou a transferência de bens, sob pena de sofrer o ajuizamento de medida cautelar fiscal (MACHADO, 1998).
Um dos maiores problemas é que, no arrolamento administrativo – nítida medida de natureza acautelatória e, portanto, dotada de essencial provisoriedade – além da possibilidade de aplicação contra quem ainda não é devedor tributário, a lei não estabelece prazo para sua manutenção, o que parece ferir as garantias do contribuinte, especialmente o direito fundamental ao processo administrativo fiscal e, consequentemente, ao devido processo legal e à razoável duração do processo (MARINS, 2001).
Em vista disso, o presente artigo foi estruturado em três capítulos: no primeiro serão abordadas as características gerais do Processo Administrativo Fiscal, em que momento se dá efetivamente o seu início e que leis o regulamentam.
No segundo capítulo serão abordadas as garantias do contribuinte no processo administrativo fiscal, com ênfase no direito fundamental ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa e à razoável duração do processo – todos diretamente relacionados com o objeto principal do estudo, que é arrolamento administrativo de bens.
Por fim, no terceiro capítulo será analisada a medida de arrolamento administrativo de bens propriamente dita, suas principais características, sua natureza jurídica e sua eventual inconstitucionalidade por ofensa aos direitos
fundamentais do contribuinte, notadamente o direito à razoável duração do processo.
2 Considerações Gerais sobre o Processo Administrativo Fiscal
O Processo Administrativo é gênero do qual são espécies o Processo Administrativo Disciplinar, o Processo Administrativo Ambiental e o Processo Administrativo Fiscal. Consiste num instrumento pelo qual a Administração Pública exerce o controle da atuação dos seus agentes e dirime as controvérsias com os administrados2. Além disso, exige a observação dos direitos e garantias fundamentais processuais, notadamente o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório (MEIRELLES, 2009).
2 Vale observar que nem legislador, nem a doutrina administrativista – em sua maior parte – costumam fazer a distinção entre os termos “processo” e “procedimento” administrativo, embora os seus conceitos sejam absolutamente inconfundíveis: “processo” é conjunto de atos sucessivos realizados para atingir os fins estatais; “procedimento” é o rito utilizado, a maneira pela qual os atos administrativos são dinamicamente organizados (MARINELA, 2012).
Grande parte da doutrina entende, também, que o processo administrativo propriamente dito, diferentemente do procedimento, envolve uma situação de litígio entre a Administração Pública e o particular ou o servidor e, por consequência, exige um julgamento administrativo (MELLO, 2008). A depender do objeto discutido, ter-se-á um Processo Administrativo Disciplinar ou um Processo Administrativo Fiscal.
O Processo Administrativo tem a finalidade de conferir maior transparência à atuação do Estado, possibilitar maior controle na formação das decisões administrativas, exigir a devida fundamentação nos atos praticados pelo administrador e evitar a realização de arbitrariedades pelos agentes públicos (MARINELA, 2012). Ou seja, é importante mecanismo de defesa e de segurança jurídica para os administrados (MELLO, 2008).
Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 487) assinala que a relevância do processo administrativo,
[…] decorre do fato de ser um meio apto a controlar o “iter” de formação das decisões estatais, o que passou a ser um recurso extremamente necessário a partir da multiplicação e do aprofundamento das ingerências do Poder Público sobre a sociedade. Estas se alargaram e se intensificaram como fruto das profundas transformações ocorridas na concepção de Estado e, pois, das missões que lhes são próprias.
Feitas essas brevíssimas considerações sobre o Processo Administrativo em geral, cabe passar, agora, ao exame das características especificas do Processo Administrativo Fiscal – objeto central do presente trabalho.
O Processo Administrativo Fiscal é regulamentado pela Lei nº 9.784/99 (que disciplina o processo administrativo geral), pela Lei nº 9.532/97 (que, dentre outras questões, trata da medida de arrolamento administrativo de bens), pela Lei nº 8.397/92 (que regulamenta a Medida Cautelar Fiscal), pelo Decreto nº 70.235/72 (que trata do processo administrativo fiscal propriamente dito). Para suprir eventuais lacunas, aplicam-se de maneira subsidiária os Códigos Civil e Penal e os Códigos de Processo Civil e de Processo Penal (MARINELA, 2012). Os operadores do direito utilizam-se, ainda, do Código Tributário Nacional e, evidentemente, da Constituição Federal.
A doutrina refere que
[…] o processo administrativo fiscal trata-se de um utilitário ao mesmo tempo, cívico e administrativo, isto é, de um lado como garantia suplementar ao exercício dos direitos da cidadania e, de outro lado, como filtro, de qualidade e excelência, da atuação do Fisco. Não se trata de uma ferramenta de arrecadação, e sim, de um esteio a sustentar um elevado padrão jurídico na configuração da relação obrigacional tributária, com respeito aos parâmetros do devido processo legal, que é um pilar do Estado Democrático de Direito.
[…] o processo administrativo fiscal constitui-se notável instrumento de controle do uso dos poderes administrativos, possuindo uma função legitimadora da atividade administrativa tributária, na busca do valor do tributo devido, levando em conta os atos praticados pelo contribuinte (JANCZESKI, 2011, p. 2).
O processo administrativo fiscal está relacionado com a determinação, exigência ou dispensa dos créditos fazendários, envolvendo, inclusive, a imposição de penalidades ao contribuinte. Compreende as modalidades de controle – lançamento e da consulta; de outorga – isenções fiscais; de punição – processos desencadeados por infração fiscal; e, ainda, as denominadas vias impróprias, “[…] simples autuações de expediente que tramitam pelos órgãos tributantes e repartições arrecadadoras para notificação do contribuinte, cadastramento e outros atos complementares de interesse do fisco” (MELLO, 2008, p. 707).
Em doutrina, não existe consenso sobre o momento exato de instauração do “processo administrativo fiscal” (MARINS, 2001). Há quem diga que o processo administrativo fiscal só terá início quando o contribuinte manifestar e formalizar o seu
inconformismo com o ato da Administração Pública. Enquanto não for instalado o “contencioso” não há falar em processo administrativo fiscal. James Marins (2001, p. 162), ressalta, ainda, que
A mera bilateralidade do procedimento não é suficiente para caracterizá-lo como processo. Pode haver participação do contribuinte na atividade formalizadora do tributo e isso se dá, por exemplo, quando este junta documentos contábeis que lhe foram solicitados ou quando comparece ao procedimento para esclarecer esta ou aquela conduta ou procedimento fiscal que tenha adotado na sua atividade privada. Até esse ponto não se fala em litigiosidade ou em conflito de interesses, até porque o Estado ainda não formalizou sua pretensão tributária. Há mero procedimento que apenas se encaminha para a formalização de determinada obrigação tributária (ato de lançamento).
Por outro lado, há quem sustente que o processo estaria instaurado mesmo antes do litígio, no momento de formalização do crédito tributário, pois, nessa fase, pode haver a participação do contribuinte, apresentando os documentos que lhe foram solicitados ou comparecendo para prestar esclarecimentos (MARINS, 2001).
A despeito das controvérsias, significativa parcela da doutrina entende que a instauração do processo administrativo fiscal se dá a partir da formalização do crédito tributário com a lavratura do lançamento, pois é a partir desse momento que se abre a possibilidade efetiva da fase contenciosa. Em outras palavras, o lançamento tributário seria o ponto de partida do processo administrativo fiscal (MARINS, 2001) e parece ter sido esse o entendimento adotado pelo legislador no artigo 14 do Decreto nº 70.235/1097, que dispõe: “A impugnação da exigência instaura a fase litigiosa do procedimento”.
O processo administrativo fiscal nasce, então, quando o Estado, por meio do lançamento tributário, verifica e constata a ocorrência do fato gerador, traça suas características materiais e jurídicas, identifica um determinado sujeito passivo, calcula o tributo devido, examina a penalidade a ser aplicada e notifica o contribuinte (CARVALHO, 1974 e MELO, 2014).
Murilo Godoy (2014, p. 2) observa que
Com a notificação do lançamento o contribuinte toma conhecimento da obrigação lançada, sua quantificação e origem, e tem a oportunidade de noticiar ao Fisco eventual erro ou excesso que lhe impute prejuízo, surgindo, via de regra, nesse momento, a oportunidade para o contraditório e para a ampla defesa do contribuinte.
Como se vê, a notificação do lançamento permite ao contribuinte deflagrar a fase contenciosa do processo administrativo fiscal, que deve, necessariamente, observar as garantias do contribuinte e “[…] subordinar-se aos princípios gerais […]”, notadamente ao princípio do devido processo legal com seus desdobramentos (MEIRELLES, 2009, p. 707).
3 Garantias do Contribuinte no Processo Administrativo Fiscal
Segundo a Constituição Federal de 1988, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, inc. LIV), sendo assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV) e “a todos, no âmbito judicial e administrativo […] a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII). Sem dúvida, a Carta Política declarou “[…] de forma inconteste que o procedimento administrativo estava, sim, sujeito ao princípio do due process of law […]” (USTRA, 2014, p. 2), donde se extrai que o devido processo legal com seus desdobramentos caracteriza genuína garantia fundamental do contribuinte no processo administrativo fiscal.
De fato, o próprio processo administrativo, seja da espécie que for, representa um direito fundamental do contribuinte, constitui um mecanismo de proteção ao administrado, pois lhe dá a oportunidade de ser ouvido antes da decisão administrativa final. É um instrumento voltado para a transparência da atuação administrativa, além de ser, como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 479), a mais importante ferramenta “[…] de garantia dos administrados ante as prerrogativas públicas […]”.
Por meio do processo administrativo torna-se viável a prolação de uma decisão bem fundamentada e responsável, que leva em conta os aspectos relevantes assinalados pelo contribuinte (MELLO, 2008).
Como dito, o processo administrativo fiscal é regulamentado por diversas leis, que estabelecem, no conjunto, uma série de direitos e garantias para o cidadão/administrado:
O Direito Processual Tributário se constitui no subsistema jurídico que corresponde ao conjunto de normas jurídicas disciplinadoras da relação jurídica tributária em seu momento crítico através da aplicação à lide tributária, com seu modo diferenciado, das garantias inerentes ao devido processo legal, especialmente a ampla defesa com os meios e recursos a
ela inerentes e também dos mecanismos administrativos e judiciais necessários à atuação julgadora do Estado (MARINS, 2001, p. 96-97).
A Lei nº 9.784/99 – que trata do Processo Administrativo “Geral” e é aplicada subsidiariamente ao Processo Administrativo Fiscal – prevê uma série de direitos e garantias para o administrado, que devem ser observados pela Administração Pública. Em especial, no que interessa ao presente estudo, a lei determina a obediência aos princípios da “legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência” (art. 2º); garante os “direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos que possam resultar sanções e nas situações de litígio (parágrafo único, X, do art. 2º); reconhece o direito do administrado “formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente” (art. 3º, III) e assegura o direito de ser intimado dos atos e das decisões (art. 26). A lei concede à Administração o prazo de 30 (trinta) dias para decidir, “salvo prorrogação por igual período expressamente motivada” (art. 49), com a “indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II – imponham ou agravem deveres, encargos e sanções” (art. 50, I e II). Resguarda, por fim, a possibilidade da interposição de recursos “em face de razões de legalidade e de mérito” (arts. 56, 57 e 65).
O Decreto nº 70.235/1972 – que dispõe sobre o processo administrativo fiscal propriamente dito – estabelece textualmente que “a exigência de crédito tributário, a retificação de prejuízo fiscal e a aplicação de penalidade isolada serão formalizadas em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada imposto, contribuição ou penalidade”, prescrevendo que o auto de infração será lavrado por “servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente… III – a descrição do fato; IV – a disposição legal infringida e a penalidade aplicável; V – a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugna-la no prazo de 30 (trinta) dias” (arts. 9º e 10). Naturalmente, preceitua que “da decisão caberá recurso voluntário, total ou parcial, com efeito suspensivo, dentro dos 30 (trinta) dias seguintes à ciência da decisão” (art. 33).
Com efeito, o processo administrativo fiscal é pautado pelos princípios processuais fundamentais, do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), do
contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), do duplo grau de cognição (CF, art. 5º, LV), da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), além do Princípio da Motivação, implícito em vários dispositivos da Carta Política (MARINELA, 2012).
Cumpre acentuar que o Princípio do Devido Processo Legal, até 1988, limitava-se à esfera judicial. Com a promulgação da Carta Magna de 1988, além de ser estendido ao processo administrativo, passou a ser considerado “[…] um superprincípio norteador de todo o ordenamento jurídico. Um direito fundamental […]” (MARINELA, 2012, p. 1073). No âmbito fiscal, subdivide-se em duas vertentes: uma substancial e outra processual, referindo-se esta ao direito de impugnar o ato administrativo (leia-se, direito ao contraditório); ao direito à autoridade julgadora competente; ao direito à cognição ampla do litígio; ao direito à produção de provas e ao direito de interpor recursos . Como observa James Marins (2011, p. 186), a obediência do Princípio do Devido Processo Legal, enquanto garantia fundamental do contribuinte, “[…] representa, em seu conjunto, verdadeira conditio sine qua non da validade constitucional do processo administrativo tributário […]”.
Fernanda Marinela (2012, p. 1073) acrescenta que o devido processo legal
[…] assegura que as relações estabelecidas pelo Estado sejam participativas e igualitárias. Traz a certeza de que o processo de tomada de decisão pelo Poder Público não seja um procedimento arbitrário, mas um meio de afirmação da própria legitimidade e de afirmação perante o indivíduo.
O contraditório e a ampla defesa consubstanciam a bilateralidade do processo administrativo: pelo lançamento tributário a Administração Pública alega um crédito e concede ao contribuinte o direito de resposta. A impugnação concretiza a resistência formal do contribuinte contra a pretensão do Estado, materializa o direito de ser ouvido (MARINS, 2001, p. 187-189). A ampla defesa, por sua vez, traduz o direito do contribuinte ao exame de todas as suas alegações, bem como o direito de produzir todas as provas que sejam capazes de demonstrar os fatos alegados (MARINS, 2001).
Vale dizer,
A violação ou a supressão a qualquer etapa do procedimento de constituição do crédito tributário representa ofensa aos princípios-regra do devido processo legal e da segurança jurídica, subtraindo da esfera de direitos do cidadão uma parcela substancial que se liga à ampla defesa […] (GODOY, 2014, p. 3-4).
Por certo, o desrespeito ao contraditório e à ampla defesa ensejará a provocação do Poder Judiciário (USTRA, 2014), a quem cabe julgar toda e qualquer “lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV).
Nos termos da Lei nº 9.784, o contribuinte deve apresentar todos os documentos e oferecer todas as alegações que entender pertinentes no momento da impugnação, sob pena de preclusão, ressalvada a existência de fato superveniente. Ou seja, deve ser oportunizada ao contribuinte a possibilidade de apresentar defesa sobre “matéria nova” ou, mesmo não sendo nova, que não tenha sido ventilada na primeira manifestação, quando esta se mostrar útil para o julgamento do caso ou quando atender os interesses do contribuinte ou da própria Administração – o que parece ir ao encontro da ampla defesa (JANCZESCKI, 2011). Ora, se
[…] nem mesmo junto ao processo judicial, em que vigora a verdade formal, a apresentação de razões complementares sobre o tema em discussão é coibida […]. Na esfera administrativa, com muito mais razão, todos os ângulos de análise devem ser apreciados, evitando-se que o julgamento seja prejudicado pela omissão e motive a provocação do judiciário.
[…]
Se não se nega à autoridade fiscal o direito de reexaminar de ofício, independentemente da reclamação e das razões do contribuinte, os motivos que a levaram a constituir o crédito tributário para o feito de corrigir eventuais erros e defeitos na sua elaboração, com muito mais elementos, poderá perseguir a verdade real a partir da manifestação do sujeito passivo, mesmo que a sua apresentação não tenha seguido fielmente as determinações ditadas pelos dispositivos que regem o procedimento administrativo (JANCZESCKI, 2011, p. 4-6).
A garantia do duplo grau de cognição – corolário da ampla defesa – representa a possibilidade de revisão dos julgamentos administrativos, possibilitando “[…] qualidade e segurança da prestação estatal julgadora […]” (MARINS, 2001, p. 193). Pode ser exercido tanto pela Administração Pública, em razão do seu Poder de Autotutela, quanto provocado pelos administrados mediante a interposição de recursos, até que se chegue à autoridade máxima (DI PIETRO, 2009), salvo, por óbvio, se o procedimento já tiver iniciado perante a autoridade máxima (MELLO, 2008).
A garantia fundamental do contribuinte à razoável duração do processo ou à celeridade processual, prevista expressamente no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, parece ser, para o objeto do presente estudo, a mais importante, justamente porque a medida analisada envolve a restrição de bens e direitos do particular.
Ainda que possa haver dificuldade na aplicação prática do princípio, por se tratar de conceito aberto e indeterminado (MARINELA, 2012), o fato é que a Lei nº 9.784 concede o prazo de 30 (trinta dias), prorrogáveis por igual período devidamente motivado, para a Administração Pública proferir suas decisões (arts. 49 e 50). Tal regra, indiscutivelmente, atende à recomendação constitucional. É evidente, porém, que não basta ser célere; é preciso que o processo seja, também, adequado e justo (NOVELINO, 2012).
Em suma, a razoável duração do processo é fundamental para satisfazer a garantia do devido processo legal com todos os seus desdobramentos, porquanto “[…] A lentidão processual é incompatível com a proteção do interesse público e jamais permitirá o exercício da ampla defesa” (MARINELA, 2012, p. 1085).
Aqui se chega ao ponto crucial do presente estudo: a despeito de todas as garantias fundamentais mencionadas, em especial a da razoável duração do processo, surpreendentemente a Lei nº 9.532, de 1997, veio autorizar o arrolamento administrativo dos “bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio” (art. 64), impondo ao contribuinte o dever de comunicar “à unidade do órgão fazendário que jurisdiciona o domicílio tributário do sujeito passivo” a transferência, alienação ou oneração dos respectivos bens (art. 64, § 3º).
O problema que se vê – além de não ser clara quanto ao pressuposto da constituição do crédito tributário – é que a Lei não estabeleceu nenhum prazo para a manutenção da medida, como se ela pudesse perdurar ad aeternum.
Ruy Cirne Lima (2007, p. 297-298) já observava que
Todo o poder do Estado está subordinado à realização desses objetivos de proteção à dignidade da pessoa humana, do respeito aos direitos fundamentais e do reconhecimento do valor Justiça. Na realidade, os direitos fundamentais preexistem ao Estado, cabendo aos poderes estatais assegurá-los e respeitá-los. É por isso que não se concebe, na nossa Constituição Federal, sequer a possibilidade de objeto de deliberação da proposta de Emenda Constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV). Os direitos e garantias individuais fazem parte do núcleo imodificável da Constituição, não sendo suscetíveis de qualquer alteração.
Assim, se for verdade que, dentre todas as garantias referidas, o contribuinte tem direito à razoável duração do Processo Administrativo Fiscal, então parece forçoso reconhecer que a Lei nº 9.532/1997 padece de absoluta
inconstitucionalidade material, pois autoriza a constrição dos bens do particular mesmo sem a existência de um processo administrativo fiscal e, pior ainda, sem prazo definido.
4 A Inconstitucionalidade da Medida de Arrolamento Administrativo de Bens
A medida de arrolamento administrativo dos bens é, em última análise, um inventário, “[…] uma relação, de todos os bens do sujeito passivo da obrigação tributária, feito pela autoridade da administração tributária […]”, cuja finalidade é “[…] facilitar a penhora de bens, se e quando proposta a execução fiscal […]” (MACHADO, 1998, p. 65).
A regra está disposta no artigo 64, caput, da Lei nº 9.532/97 – que alterou a legislação tributária federal, dentre elas, a medida cautelar fiscal criada pela Lei nº 8.397/92 – e estabelece a possibilidade da autoridade fazendária arrolar administrativamente os bens do eventual sujeito passivo tributário quando a dívida representar trinta por cento a mais do que seu patrimônio.
A medida, pelo menos em tese, “[…] não impede a alienação dos bens arrolados, nem se pode se prestar para ser objeto de averbação no registro de imóveis (para o caso de arrolamento de bens de raiz) […]” (MARINS, 2001, p. 447).
O arrolamento permite à Administração Pública acompanhar a situação patrimonial do contribuinte, até mesmo para inibir eventuais tentativas de fraudes à execução (MARINS, 2001). É um verdadeiro ato preparatório para a medida cautelar fiscal, ação prevista na Lei nº 8.397/92, visando à indisponibilidade dos bens atingidos, já em sede judicial (MARINS, 2001).
De fato, o legislador estabeleceu inequívoca conexão entre o arrolamento administrativo dos bens e a medida cautelar fiscal: conquanto o arrolamento não impeça o contribuinte de promover a alienação de bem arrolado administrativamente (MARINS, 2001), “[…] a medida cautelar fiscal poderá ser requerida contra o sujeito passivo de crédito tributário ou não tributário quando o devedor […] aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei”3 (Lei nº 8.397/92, art. 2º).
3 Observa-se que a mesma regra está no § 4º do artigo 64 da Lei 9.532/97.
Sustenta-se que, “[…] sem lançamento, não é possível, ainda, o arrolamento […]” (MACHADO, 1998, p. 66), pois só assim a dívida tributária seria líquida, certa e exigível, além do devedor estar bem identificado. A obrigação tributária deveria ser exigível para autorizar o arrolamento dos bens e, portanto, seria indispensável o lançamento, mesmo que eventualmente o crédito tributário possa ter sua exigibilidade suspensa (PEREIRA, 2007).
Contudo, em sentido contrário, a Lei nº 9.532/97 alterou o artigo 1º, parágrafo único da Lei nº 8.397/92, precisamente para permitir, “na hipótese dos incisos V, alínea ‘b’, e VII, do art. 2º”, a medida cautelar fiscal “[…] independentemente da devida e prévia constituição do crédito tributário” (CAIS, 2006, p. 170).
Logicamente, se o arrolamento administrativo é “[…] requisito objetivo, direto e suficiente para o bloqueio judicial dos bens do sujeito passivo, mediante mero requerimento judicial do ente público […]”, então a medida cautelar fiscal, “independe da prévia constituição do crédito tributário” (MARINS, 2001, p. 450).
Nas palavras do conspícuo jurista:
Ao prescrever que fica exposto ao bloqueio judicial de bens o sujeito passivo que ‘possui débitos, inscritos ou não em Dívida Ativa, que somados ultrapassem trinta por cento de seu patrimônio líquido conhecido’ está-se buscando a conexão com o art. 64, incs. VI e VII da Lei 9.532/97, de modo a –[por forma transversa] – emprestar à medida administrativa de mero inventário de bens do cidadão o efeito lógico de bloqueio patrimonial e obrigando-lhe, em injurídica inversão probatória, a provar que o ato jurídico praticado não tinha qualquer finalidade fraudulenta: i) nosso sistema jurídico não admite a autotutela da Fazenda na cobrança de seus créditos (somente na sua constituição), dependente que é da intervenção judicial através da execução fiscal ou da cautelar fiscal para promover a constrição aos bens do devedor; ii) logo, não é lícito à administração fazendária promover autonomamente medidas constritivas aos bens do contribuinte; iii) de modo que a burlar esta garantia dos particulares cria-se artifício que torna automática a relação de causa e efeito entre o mero levantamento administrativo de bens e sua indisponibilidade como resulta claro da conexão entre o art. 64 da Lei 9.532/97 e o inciso VI do art. 2º da Lei 8.397/92 (MARINS, 2001, P. 450).
Acontece que a possibilidade de alienação faz parte do direito fundamental de propriedade. Trata-se de um direito subjetivo do proprietário e, portanto, ainda que o bem tenha sido objeto de arrolamento administrativo, isso, por si só, não poderia servir de motivo “direto e suficiente” para o bloqueio judicial dos bens.
Entretanto, repita-se, o arrolamento administrativo obriga o suposto devedor tributário a informar a autoridade fazendária sobre eventual alienação de seus bens,
a qualquer título (MACHADO, 1998), justamente para que a Administração Pública possa valer-se da medida cautelar fiscal, que “[…] poderá ser requerida contra o sujeito passivo de crédito tributário ou não tributário, quando o devedor […] – aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei” (Lei nº 8.397/92, art. 2º, VII).
A simples falta de comunicação à Fazenda Pública sobre a alienação de um bem arrolado administrativamente permite o requerimento da medida cautelar fiscal (Lei 9.532/97, art. 64, §§ 3º e 4º) “[…] antes, ou no curso da execução judicial da dívida ativa das pessoas jurídicas de direito público, sendo sempre dependente da execução a cujos autos deve ser apensada, conforme consta dos arts. 5º, 11 e 14 da Lei” nº 8.397/92 (CAIS, 2006, p. 708).
O problema é que “[…] a regra criada, além de desvirtuar o princípio do ônus probandi, destoa de todo o regime processual das tutelas de urgência […]” – que, na sua essência, em nada sofreram modificações acerca das tutelas cautelares e da antecipação de tutela previstas no CPC/1973 – porquanto “[…] não prescindem, jamais, de uma situação jurídica individualizada justificadora da concessão de medida inaudita altera parte” (MARINS, 2001, p. 450-451).
A inconstitucionalidade – ou pelo menos a arbitrariedade – da vantagem conferida à Fazenda Pública parece indisfarçável, porquanto caberia à Administração demonstrar, no mínimo, indícios de conduta fraudulenta do contribuinte.
E mais, a Lei nº 9.532/97 não estabelece prazo de duração para a medida de arrolamento administrativo, muito embora não haja dúvida de que, como toda tutela provisória, deveria submeter-se ao requisito da temporariedade, além do fumus boni júris e do periculum in mora.
Nesse contexto, a medida de arrolamento administrativo de bens contra um eventual sujeito passivo tributário – já que independe da constituição do crédito – para vigorar por tempo indeterminado padece de notória inconstitucionalidade material, pois ofende os princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da razoável duração do processo.
Note-se que, conforme Cleide Previtalli Cais (2006, p. 708), o arrolamento administrativo possui características típicas das tutelas provisórias previstas no Código de Processo Civil, na medida em que “[…] faculta a sua instauração antes ou
no curso do processo principal, do qual é sempre dependente e a cujos autos […] deve ser apensado […]”.
Mas, não havendo prazo para a manutenção da medida, o suposto devedor tributário acaba ficando com seus bens “congelados” por tempo indeterminado, o que torna preocupante o efeito prático do arrolamento administrativo, vez que:
[…] é este tornado público, tanto que o termo respectivo é levado ao registro imobiliário, é registrado nos órgãos ou entidades que registrem ou controlem a propriedade de bens móveis, e no registro de títulos e documentos. Para quê? Para criar contra o proprietário dos bens arrolados um clima negativo, que na prática corresponderá a uma quase proibição de dispor de seus bens (Hugo Machado, 1998, p. 67).
Ainda que teoricamente a medida não deva implicar efeito restritivo, nem empecilho para uma eventual alienação, não há dúvida de que, na prática, o arrolamento traz a sensação de “[…] situação grave, capaz de ensejar problemas para os adquirentes de bens arrolados […]” (MACHADO, 1998, p. 67-68). Portanto, a medida se mostra seriíssima para o contribuinte.
Se as medidas cautelares servem para assegurar o “resultado útil do processo” (CPC, art. 305) e não para satisfazer antecipadamente o direito alegado, é claro que não deveriam acarretar o referido “efeito prático” danoso, como se tem verificado.
Ainda assim, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já decidiu que o arrolamento administrativo é apenas um inventário dos bens do contribuinte e não representa qualquer desafio ao seu patrimônio (Des. Fed. Maria de Fátima Freitas Labarrère, AC nº 5017914-97.2011.404.7100).
Tratava-se ali de uma execução fiscal manejada em 2005 pela Fazenda Nacional contra determinada pessoa jurídica, sem que houvesse sido incluído no polo passivo da demanda o sócio, pessoa física. Apesar disso, sócio sofreu o arrolamento administrativo de todos os seus bens – móveis e imóveis – sem que, passados mais de dez anos, tivesse sido alvo de qualquer cobrança tributária, sequer mediante o redirecionamento da execução, que continuou correndo exclusivamente contra a pessoa jurídica.
Nesse contexto, cabem as seguintes indagações: se o arrolamento administrativo de bens tem natureza meramente acautelatória, seria possível que se perpetuasse no tempo apenas porque a Lei nº 9.532/97 não estabeleceu nenhum prazo para a duração da medida? Não haveria, nessa permanência indeterminada,
inconstitucionalidade material por ofensa à garantia do devido processo legal e, notadamente, à cláusula da razoável duração do processo?
Vale enfatizar que o ordenamento jurídico impõe um prazo para toda e qualquer medida acautelatória: o Código de Processo Civil determina que, quando a tutela cautelar for requerida “[…] em caráter antecedente […]” (CPC, art. 305), o pedido principal deverá ser formulado no prazo de 30 dias após “Efetivada a tutela cautelar […]” (CPC, art. 308)4 e no artigo seguinte dispõe que “Cessa a eficácia da tutela concedida em caráter antecedente se: I – o autor não deduzir o pedido principal no prazo legal […]” (CPC, art. 309, I); o Código de Processo Penal, ao tratar das medidas assecuratórias, confere o prazo de 60 dias para a propositura da ação penal quando tenha sido decretado o sequestro de bens (CPP, art. 131, inc. I); a própria Lei 8.397/92 – que disciplina a medida cautelar fiscal – preceitua, em seu artigo 11, que “[…] quando a medida cautelar fiscal for concedida em procedimento preparatório, deverá a Fazenda Pública propor a execução judicial da Dívida Ativa no prazo de sessenta dias, contados da data em que a exigência se tornar irrecorrível na esfera administrativa”; e, ainda, o Decreto nº 20.910/1932, que regulamenta a prescrição perante a Fazenda Pública, estabelece textualmente, no seu artigo 1º, que “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem”.
4 Art. 308, do Código de Processo Civil – “Efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta dias), caso em que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido de tutela cautelar, não dependendo de adiantamento de novas custas processuais. (grifo nosso)
Seguindo essa linha de raciocínio, o eminente Desembargador Federal Leandro Paulsen, em seu voto no julgado antes mencionado (TRF4, AC nº 5017914-97.2011.404.7100, Des. Fed. Maria de Fátima Freitas Labarrère), advertiu que
[…] a Lei que criou a prerrogativa da Fazenda Pública de realizar o arrolamento dos bens não traz algum (prazo). Então, ficamos numa espécie de perplexidade quanto à possibilidade, ou não, de perpetuação dessa medida, que, se não corresponde propriamente a uma indisponibilidade de bens, tem sim efeitos restritivos quanto à livre disposição da propriedade, tanto que há necessidade de o proprietário comunicar eventuais operações. E comunicar com que objetivo? Com o objetivo de gerar o ajuizamento da ação, da medida cautelar fiscal com vista justamente à anulação destes atos, quem sabe por fraude à dívida ativa ou coisa que o valha… Se não temos um dispositivo, é porque o legislador se omitiu neste aspecto, mas
nós temos a questão da segurança jurídica a orientar não somente o legislador, mas também os aplicadores do direito. Existem muitos prazos estabelecidos para dar justamente uma estabilização às situações jurídicas, mesmo quando há benefícios indevidos percebidos, por exemplo, por servidores públicos. Nós temos a própria lei do processo administrativo hoje em dia estabelecendo lá um prazo de cinco anos para a Administração anular atos concessivos desses benefícios, ou seja, ainda que de benefícios indevidos se cuidassem, haveria prazo decadencial. Há o prazo prescricional de cinco anos para a cobrança do crédito tributário, que não é exato para essa situação, mas também aponta para um prazo de cinco anos, e nós temos, sobretudo, como uma espécie de guarda-chuva a amparar situações em geral que não tenha regramento específico, aquele vetusto, mas importante prazo, de cinco anos, lá do Decreto nº 20.910/32. Então, enfim, seja qual for a norma que nós pudéssemos invocar, parece-me que, no máximo, um prazo de cinco anos seria o razoável para que se pudesse pelo menos migrar desta situação precária de arrolamento, que tem sim, uma finalidade cautelar, ao menos uma conversão desse arrolamento em penhora ou mesmo algo que pudesse ser protegido a título de uma medida cautelar fiscal ajuizada pela Fazenda Pública.
Sintetizando, o arrolamento administrativo de bens tem indiscutível natureza jurídica marcadamente cautelar e, assim, não poderia ter efeitos mais duradouros do que a própria medida cautelar fiscal: toda medida acautelatória, inclusive no plano administrativo, deve ser essencialmente provisória e temporária.
Na lição de Humberto Theodoro Júnior (1978, p. 66-67),
[…] o provimento cautelar não se reveste de caráter definitivo, […] ao contrário, se destina a durar por um espaço de tempo delimitado. De tal sorte, a medida cautelar já surge com a previsão de seu fim. Significa essa provisoriedade, mais precisamente, que as medidas cautelares têm duração temporal limitada […].
Pouco importa que a Lei nº 9.532/97 não tenha previsto prazo para o arrolamento administrativo: isso não retira a natureza cautelar da medida, nem pode justificar o “congelamento” – por tempo indeterminado – dos bens atingidos, pela via indireta do registro da constrição em todos os ofícios públicos, como permitiu o Tribunal Regional Federal da 4ª. Região no julgado acima comentado.
Essa constrição dissimulada, não só faz por aniquilar o direito de propriedade, inviabilizando – na prática – qualquer possibilidade de disposição dos bens afetados, mas também implica frontal ofensa às garantias do contribuinte. Nada justifica, na ordem jurídica em vigor, manter o patrimônio do particular afetado por mais de dez anos, com apoio numa medida administrativa de natureza cautelar eternizada pela inércia do Poder Público em prejuízo dos direitos e garantias individuais.
As garantias do contribuinte têm raízes fincadas no princípio da dignidade da pessoa humana, pois “[…] o Estado existe para proteger a liberdade e os direitos humanos e não para violá-los. A liberdade e a propriedade dos indivíduos podem ser limitadas apenas pelas exigências do bem comum, jamais pelo oportunismo político e pelas finalidades burocráticas do Estado […]” (CIRNE LIMA, 2007, p. 296-297).
Desse modo, como seria possível resolver o impasse?
Tendo em vista que o presente estudo se restringe à questão do prazo de duração da medida de arrolamento administrativo de bens5, não é o caso de aprofundar o exame do problema. Poder-se-ia, no entanto, como simples proposta (MORAES, 2013), cogitar da Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), em vista da ofensa ao devido processo legal (CF, art. 5º, inc. LIV), ao contraditório, à ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e à razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII). E, ainda, pensar no ajuizamento de ação anulatória do ato administrativo de arrolamento dos bens, com fundamento analógico tanto na Lei nº 8.397/92 – que rege a medida cautelar fiscal e estabelece o prazo máximo de sessenta dias para a propositura da execução fiscal – quanto nas demais regras que tratam das medidas cautelares, todas prevendo um prazo máximo para a duração da tutela provisória.
5 Importa esclarecer que a crítica do presente estudo não está relacionada com a previsão legal da medida de arrolamento administrativo dos bens propriamente dita, mas sim à omissão do legislador quanto ao prazo de duração da medida. É perfeitamente compreensível que a Administração Pública possa valer-se de meios gravosos em nome do “bem comum”. O que parece inaceitável é que esses meios possam perpetuar-se no tempo, agredindo todos os princípios processuais basilares do ordenamento jurídico e, pior, afrontando direitos fundamentais do cidadão.
6 Conclusão
De todo o exposto, parece possível depreender que o arrolamento administrativo dos bens é medida de natureza cautelar e tem como finalidade manter o patrimônio do devedor sob “vigilância” para garantir a eficácia de eventual execução fiscal.
A omissão do legislador, que não cuidou de fixar prazo para a vigência da medida, está longe de escusar a perpetuação do arrolamento administrativo. Num Estado Democrático de Direito, norteado pelos princípios do devido processo legal, do processo justo, da duração razoável do processo, da segurança jurídica, do direito de propriedade, da dignidade da pessoa humana – também na instância
administrativa – não é possível conferir à Fazenda Pública privilégio desproporcional e desarrazoado. A inconstitucionalidade material é flagrante, pelo que cabe aplicar ao arrolamento administrativo de bens os princípios e as regras gerais da tutela cautelar para suprir a lacuna deixada pela Lei nº 9.532/97.
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