Análise Crítica Dos Recursos Repetitivos
Sob A Ótica Da Aproximação Do Sistema Jurídico
Da Common Law No Ordenamento Brasileiro

#02 - ABRIL 2023

*Lucca Silveira Finocchiaro. 

(Advogado. Mestre em Direito – FMP)

 

RESUMO

 

A importância da segurança jurídica denota-se pela sua função estruturante no Direito. Com efeito, tanto no common law quanto no civil law, os valores da segurança jurídica e previsibilidade são almejados. No civil law a segurança jurídica e a igualdade são representadas em essência pelo produto da atuação do parlamento, pelas normas positivas; no common law, pela aplicação das decisões dos casos concretos já julgados aos casos futuros. O Brasil adotou – ao menos em tese – o sistema do civil law. Entretanto, diante da aproximação dos sistemas no âmbito do ordenamento brasileiro – em especial após a edição do novo código de processo civil (Lei 13.105/15) – faz-se necessário estudar as ferramentas próprias do common law. Com efeito, para um melhor funcionamento dos institutos, se faz necessário coaduná-los com sua essência originária. Esse fato traz problemáticas verificáveis em praticamente todos os institutos, dentre os quais se destacam os recursos repetitivos.

Palavras-chave: segurança jurídica; civil law; common law; precedentes; recursos repetitivos.

 

ABSTRACT

 

The importance of legal security is characterized by its structuring function in Law. In both the common law and civil law, the values ​​of legal certainty and predictability are sought. In civil law legal security and equality are represented in essence by the product of parliamentary action, by positive norms; in the common law, by applying the decisions of concrete cases already tried to future cases. Brazil has adopted – at least in theory – the civil law system. However, in view of the approximation of systems within the scope of Brazilian law – especially after the new civil procedure code (Law 13.105 / 15), it is necessary to study the common law tools. In fact, for a better functioning of the institutes, it is necessary to co-ordinate them with their original essence. This fact presents verifiable problems in practically all the institutes, among which stand out the repetitive resources.

Keywords: legal security; civil law; common law; precedents; repetitive resources.

 

INTRODUÇÃO

 

O common law e o civil law (sistema romano-germânico) são os grandes sistemas jurídicos do mundo ocidental. Ambos, de formas diferentes, visam garantir a segurança e a certeza na vida social. Com efeito, a importância da segurança jurídica para o estudo denota-se pela sua função estruturante no Direito.

Por essa razão, no primeiro capítulo se abordará a importância da segurança jurídica para o Direito. Após, será traçado um comparativo entre os sistemas jurídicos, trazendo aspectos históricos e revelando a essência de cada um. Em um terceiro momento, a partir da constatação que o Brasil adotou o sistema do civil law (o que torna despicienda a análise), serão apontados os elementos característicos do common law.

Em verdade essa análise inicial se faz importante em razão da aproximação do Brasil ao sistema da common law. Isso é constatado especialmente após a edição do novo código de processo civil (Lei 13.105/15). Tenta-se superar a “cultura do código”, adotando-se institutos inspirados na experiência da common law

Nessa senda, no segundo capítulo será abordada a aproximação dos sistemas, bem como as razões desse fenômeno. De fato, a intensificação do contencioso no Brasil, a massificação de demandas, tem gerado uma verdadeira insegurança jurídica, porquanto, para o mesmo problema, se tem decisões diversas. Com esse aporte, analisará a ordem processual civil. 

Por fim – a partir da constatação de que os institutos tem um melhor funcionamento quando coadunam com sua essência originária (common law) – verificará algumas problemáticas relacionadas aos recursos repetitivos (que também são verificáveis em outros institutos). A escolha é justificada pela preexistência no ordenamento (o que proporciona maior completude), bem como pelo seu local de trâmite (tribunais superiores).

 

1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS SISTEMAS JURÍDICOS OCIDENTAIS

 

Os dois grandes sistemas jurídicos em vigor no mundo ocidental são o do common law, presente nos países de língua inglesa e na maioria dos países que foram politicamente influenciados pela Inglaterra, e do civil law, proveniente do sistema jurídico romano-germânico. 

A distinção reside no foco da ciência jurídica, a essência a partir da qual serão desenvolvidos ou adaptados os instrumentos necessários à consecução dos fins desejados (BORGES, VANDRESSEN, 2015). 

Com efeito, “o civil law e o common law são tradições jurídicas derivadas de circunstâncias políticas e culturais distintas, o que acarretou a formação de institutos e conceitos próprios em cada sistema” (OLIVEIRA JUNIOR, 2017, p. 02).


  • Segurança jurídica como princípio estruturante do Direito

 

A finalidade do direito é a justiça, mas a formulação das normas jurídicas nem sempre tem como escopo principal concretizá-la, de modo que a positivação do direito, em geral, tem como objetivo garantir segurança e certeza na vida social: direito como instrumento de segurança (SILVA, 2009, p. 15). 

A justiça e a segurança são, portanto, os valores que embasam a existência do direito, havendo correspondência entre ambos (“segurança não é renúncia à justiça, mas sua promoção” – ÁVILA, 2014, p. 673), pois o direito seguro (segurança do direito positivado) nem sempre será justo – como ocorre nos sistemas autoritários – por outro lado, o direito inseguro será necessariamente injusto, na medida em que não assegura ou observa o princípio da igualdade, motivo da procura pelo “direito seguro legítimo, que é aquele que vale para todos” (SILVA, 2009, p. 15). 

Segundo Almiro do Couto e Silva (2017, p. 02), “a noção de segurança jurídica é conatural e, pois, indissociável da própria noção de direito, só existindo direito onde existe segurança jurídica”. É dizer: “a segurança jurídica está ligada aos elementos objetivos da ordem jurídica, voltados à garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 03).

Zenon Bankowski (2007, p. 181), por sua vez, afirma que “o ponto central do Estado de Direito é que, por ser prospectivo, nos permite prever o que acontecerá e, assim, nos permite organizar nossas vidas antecipadamente”, aspecto que também demonstra a correlação entre Estado de Direito e Segurança Jurídica.

 Para José Souto Maior Borges (2008, p. 24), “a segurança é, então, como uma bússola a nortear a exegese constitucional e a integração da Constituição Federal pela legislação ordinário rumo à sua efetividade e concretização”. No mesmo sentido, Ingo W. Sarlet (2009, p. 90) enfatiza que a segurança jurídica “passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito”, sendo “simultaneamente princípio fundamental da ordem jurídica estatal e, para além desta, da própria ordem jurídica internacional”. A sua importância é realçada em época de crise e/ou de mudança de paradigma cultural (CÔRTES, 2008, p. 26). 

Logo, a segurança jurídica é intrínseca ao Estado Democrático de Direito, tendo por objetivo, de um lado, garantir a estabilidade do ordenamento jurídico e, de outro, a proteção da legítima confiança, isto é, a previsibilidade acerca da atuação do Poder Público (CANOTILHO, 2003, p. 164)

A importância da segurança jurídica para o estudo denota-se pela sua função estruturante no Direito. Com efeito, “é certo que nos sistemas jurídicos, tanto da common law quanto da civil law, os valores da segurança jurídica e previsibilidade são almejados” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 04).

 

1.2 A experiência do common law e do civil law 

 

No civil law a segurança jurídica e a igualdade eram representadas pelo produto da atuação do parlamento – pelas leis -, já que os expoentes da revolução francesa desconfiavam dos juízes (que em geral compactuavam com a manutenção dos privilégios da monarquia absolutista). Segundo Délio Mota de Oliveira Junior (2017, p. 02), “o período anterior à Revolução Francesa, não se concebia um Poder Judiciário independente, pois não havia exata delimitação da atividade jurisdicional, de modo que os juízes, com frequência, decidiam com base na vontade dos governantes”.

E essa desconfiança em relação ao judiciário acarretou a ruptura do sistema jurídico, dando origem à era das codificações excessivas e ao formalismo na interpretação judicial (juiz apenas declara a vontade da lei ou do legislador, que representa o povo). 

Quem, portanto, garantia a segurança jurídica e a igualdade era a lei (que expressava a vontade do povo, o verdadeiro titular do poder de elaborar normas) e ao juiz cabia apenas observá-la (e não interpretá-la), ou seja, a atividade judicial era meramente declaratória de uma solução prévia concebida pelo legislador para os possíveis conflitos. 

Por outro lado, o common law inglês sempre manteve a sua estrutura, não obstante a Revolução Gloriosa de 1688, que limitou os poderes do monarca inglês, quer dizer, não houve a reformulação do direito, mas sim o seu desenvolvimento contínuo; e a força dos precedentes (ou das regras jurisprudenciais) sempre foi responsável pela preservação da segurança jurídica e também da igualdade. Ao contrário do ocorrido na França, não havia a desconfiança do Poder Judiciário, razão pela qual não se tinha a necessidade de dogmatizar o sistema jurídico pela lei. Nessa via, “o common law busca a equidade entre os cidadãos a partir da aplicação das decisões dos casos concretos já julgados aos casos futuros, cujos fatos sejam semelhantes” (OLIVEIRA JUNIOR, 2017, p. 02).

Como refere Luis Guilherme Marinoni (2016, p. 98), o sistema do common law “não relaciona a previsibilidade com o conhecimento da lei, mas sim com a previsibilidade das decisões do Poder Judiciário”.  Para René David (2002, p. 25): 

 

A regra de direito da common law, menos abstrata que a regra de direito da família romano-germânica, é uma regra que visa dar solução a um processo, e não formular uma regra geral de conduta para o futuro. As regras respeitantes à administração da justiça, ao processo, à prova, e as relativas à execução das decisões de justiça têm aos olhos dos common lawyers um interesse semelhante, e mesmo superior, às regras respeitantes ao fundo do direito, sendo sua preocupação imediata a de restabelecer a ordem perturbada, e não a de lançar as bases da sociedade. 

 

Nesse norte, o sistema do common law se caracteriza pela eleição do precedente como fonte primária, sendo tal força vinculativa das decisões, como se registrou, elemento central de tal estrutura jurídica. De se registrar que os precedentes ostentam o condão de vincular a decisão proferida aos casos posteriores (CARPENA, 2013). Para Teresa Arruda Alvim Wambier (2009, p. 04-05) “a vinculatividade dos precedentes é justificada pela necessidade de igualdade e a igualdade é atingida através da seleção de aspectos do caso que deve ser julgado”. Os precedentes judiciais, portanto, “garantem a segurança jurídica e a previsibilidade necessária para o exercício das atividades sociais” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2017, p. 08).

Por outro lado, o civil law propõe uma visão distinta da ciência jurídica, uma formulação diferente do direito, com meios e fins diversos daqueles que caracterizam o common law.  A base de formação desse sistema se encontra assentada nas leis escritas em códigos. Significa dizer que é composto de normas que englobam de forma geral os casos particulares, de modo que um juiz ou tribunal, ao deparar um caso concreto, identifica a lei que melhor a ele se aplica. É, pois, um sistema constituído por normas substantivas e gerais.

 

1.3 Elementos característicos do common law

 

O Brasil adotou – ao menos em tese – o sistema da civil law, o que retira a necessidade de maiores delongas. De fato, como o presente artigo busca demonstrar a aproximação dos sistemas no âmbito do ordenamento brasileiro, convém expor os elementos característicos básicos do common law, em especial: (1) precedente (e sua vinculatividade)/stare decisis; (2) ratio decidendi e obter dicta; (3) distinguishing e overruling.

De início cumpre salientar que common law e stare decisis não se confundem. Com efeito, “common law, compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishmen, existiu por vários séculos sem stares decisis e rule of precedent” (MARINONI, 2016, p. 29). É dizer, “o stare decisis constitui apenas um elemento do moderno common law” (MARINONI, 2016, p. 31)

Bruno Períolo Odahara (2012, p. 86-88), salienta que o termo stare decisis revela a obrigação de uma corte em seguir as decisões prévias da mesma corte; o termo “precedente”, por sua vez, é mais abrangente, sendo “usado para se referir tanto a stare decisis, quanto à obrigação de uma corte inferior de seguir decisões de uma superior”.

Nesse sentido, a teoria do stare decisis impõe a vinculação vertical (cortes superiores e inferiores) e horizontal (intracortes), de modo que “o respeito aos precedentes judiciais, em sentido vertical e horizontal, é a forma de dar coerência e integridade ao ordenamento jurídico, tornando o Direito mais seguro” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2017, p. 07).

Na common law, o precedente está caracterizado pela existência de uma decisão com força vinculante para casos futuros semelhantes. Gustavo Nogueira (2015, p. 02) salienta que precedente “é uma decisão proferida em um caso concreto isoladamente considerado, e cujas razões de decidir formam uma tese jurídica que pode vir a ser aplicada em casos futuros que com ele guardem semelhança”. Para Tucci (2015), o “precedente então nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar-se a regra de uma série de casos análogos”. 

Elucidativa a seguinte conceituação: 

 

Os precedentes judiciais, por sua vez, são soluções jurídicas expostas após raciocínio argumentativo obtido pelo intérprete a partir do caso precedente com a causa objeto de julgamento. Consiste na decisão jurisdicional proferida em um caso concreto, cujo núcleo (tese jurídica extraída da ratio decidendi) pode servir de norma geral e diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Assim, os precedentes judiciais, ao contrário da jurisprudência, não são uma tendência de julgamento adotada por um tribunal à determinada questão jurídica, mas a própria decisão de determinada matéria, que possui potencial para servir de regra para decisões judiciais de casos futuros envolvendo fatos ou questões jurídicas similares. Uma única decisão judicial pode ser identificada como precedente, não necessitando para a sua formação a reiteração, como ocorre com a jurisprudência (diferença quantitativa) […] Precedente significa, pois, uma decisão antecedente que contém uma similitude jurídica significativa com relação a um caso concreto que seja posterior (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 07).

 

A partir do conceito anterior verifica-se a introdução do termo “jurisprudência”, usualmente confundido com “precedente”. Pode-se dizer que a “distinção básica entre precedente e jurisprudência reside na circunstância de que enquanto um precedente é substantivo singular, a jurisprudência é substantivo coletivo” (CAMARGO, 2012. p. 556). Ou seja, a jurisprudência é um conjunto de precedentes de um Tribunal no mesmo sentido

Da mesma forma, percebe-se que o núcleo do precedente é extraído da chamada ratio decidendi, a qual “consiste na razão de decidir, ou seja, no fundamento utilizado pelo julgador para prolatar sua decisão” (CARREIRA, 2017, p. 02). A doutrina aduz que além da ratio decidendi, as decisões judiciais são compostas pelos obter dicta (o que é dito por dizer). 

Em suma, “tudo o que é dito em uma decisão e que não integra a ratio decidendi é obter dicta, e o que é dito obter dicta tem um peso meramente persuasivo” (WAMBIER, 2009, p. 05-06). Para Mitidiero (2015, p. 07), “a ratio decidendi constitui uma generalização das razões adotadas como passos necessários e suficientes para decidir um caso ou as questões de um caso pelo juiz”, ou seja, “abstrações realizadas a partir da justificação da decisão judicial”,

Uma questão importante no sistema do common law, é a forma de evitar de seguir os precedentes. Nessa senda, em apertada síntese, há de se destacar o overruling e o distinguishing. O primeiro “nada mais é do que a superação do precedente. É a revogação de um precedente com o objetivo de confirmar o direito” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 04). Destaca-se que “o overruling pode não ocorrer de forma expressa. Às vezes, a mudança se dá de forma gradual e acompanha a evolução da sociedade” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 05).

Por outro lado, o segundo “confere ao juiz do caso presente margem de liberdade, para reconhecer variações no contexto em que esteve inserido o caso que originou o precedente e o que aguarda sua análise, possibilitando que a aplicação do precedente judicial seja ajustada” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 19). Em outras palavras, constitui na atividade de distinguir o caso. 

Importante destacar que “verificada a distinção entre o caso em julgamento e o caso precedente, o juiz pode interpretar o precedente de maneira restritiva, o que é conhecido como restrictive distinguishing, ou então, de maneira ampliativa, chamado de ampliative distinguishing” (CARREIRA, 2017, p. 09). Seja como for, “em ambos os casos existe uma peculiaridade entre o caso em julgamento e o caso precedente que implica, por conseguinte, em uma interpretação restritiva ou ampliativa da ratio decidendi (rule of law)” (CARREIRA, 2017, p. 09).

 

2 A APROXIMAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS NO BRASIL 

 

Atualmente, “existe uma recíproca aproximação entre as tradições de civil law e de common law no mundo contemporâneo” (MITIDIERO, 2015, p. 03). De fato, “a aproximação do sistema do civil law ao do common law, no sentido de valorizar a jurisprudência no plano das fontes do direito, é um fenômeno de amplas dimensões no mundo ocidental de tradições romanísticas” (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 08).

Para tanto, é necessário avaliar as justificativas para esse “fenômeno” para, posteriormente, analisar a nova ordem processual no país.

 

2.1 Justificativas para o fenômeno

 

No civil law, o julgador “não está adstrito aos julgamentos anteriores, sejam estes proferidos por juízes de mesma hierarquia, ou mesmo de hierarquia superior. Estão limitados apenas pelos textos normativos” (CIMARDI, 2015, p. 79).

Diante da produção em massa de textos legislativos “muitos dos quais elaborados sem a menor preocupação de constitucionalidade (…), a jurisprudência episodicamente não deixa de ser uma tábua de salvação, que permite a aproximação ou o encontro do Direito com a realidade” (USTARROZ, PORTO, 2011, p. 298).

Portanto, “a percepção de que a norma é o resultado da interpretação (…) abriu espaço para que se pensasse na decisão judicial não só como um meio de solução de determinado caso concreto, mas também como um meio para promoção da unidade do direito” (MITIDIERO, 2015, 02).

De fato, com a judicialização e a intensificação do contencioso no Brasil, acaba ocorrendo o que Eduardo Cambi (2001, p. 2-3) chama de “jurisprudência lotérica”, caracterizada pela existência de decisões judiciais distintas para questões jurídicas semelhantes. Conforme o autor, “quando uma mesma regra ou princípio é interpretado de maneira diversa por Juízes ou Tribunais em casos iguais, isso gera insegurança jurídica, pois, para o mesmo problema, uns obtêm e outros deixam de obter a tutela jurisdicional”.

Eis a razão para fomentar a criação de mecanismos capazes de uniformizar a jurisprudência com efetividade, vinculando-os para casos futuros. Com efeito, deve-se buscar a aplicação do direito de maneira igual para casos semelhantes, pois “não é justo nem razoável que uns possam obter imediatamente a tutela jurisdicional enquanto outros, em igual situação, tenham que arcar com maiores ônus para conseguir a proteção jurídica adequada” (CAMBI, 2001, p. 3).

Como explica Gustavo Nogueira (2015, p. 02), “já algum tempo a doutrina vem chamando a atenção para a necessidade da estabilização da jurisprudência dos tribunais brasileiros, tendo em vista que ‘ninguém fica seguro do seu direito ante jurisprudência incerta’”. 

 

2.2 Institutos do novo CPC 

 

Com a edição do novo código de processo civil (Lei 13.105/15) é possível perceber, claramente, uma tentativa de superar a “cultura do código” (sistema do civil law). Isso porque, boa parte das inovações trazidas, dizem respeito à adoção de institutos inspirados na experiência da common law (ao menos em tese).

Pode-se dizer que “uma das características mais marcantes das recentes reformas implementadas no novo Código de Processo Civil foi a ampliação da força da jurisprudência para o deslinde das demandas” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 05). Com efeito, há uma clara preocupação em construir mecanismos aptos ao combate da “proliferação de demandas repetitivas, em razão do crescimento da litigiosidade” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 05). 

O CPC/15 “estrutura um novo modelo dogmático (constitucionalizado) para o direito jurisprudencial no Brasil, promovendo o uso adequado dos precedentes judiciais” (NUNES, PEDRON, HORTA, 2017, p. 03). Conforme Bruno Dantas (2011, p. 62), essa nova realidade “adquire relevo antes inimaginável em sistemas da civil law”.

 Dentre as “inovações” trazidas, vale destacar que a lei deixou de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador. Agora, em uma tentativa de uniformizar a jurisprudência, enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente também passaram – de certa forma – a vincular as decisões judiciais, já que o novo código de processo civil estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir seu conteúdo sem demonstrar fundamentadamente a existência de distinção no caso ou a superação do entendimento invocado (percebe-se aqui precariamente o distinguishing e overruling)

Referido artigo foi introduzido na lei com o objetivo de que as decisões judiciais sejam tomadas com coerência ou integridade, ou seja, não destoem de outras decisões já prolatadas sobre o mesmo tema e envolvendo as mesmas circunstâncias. Para Carreira (2017, p. 12), “a decisão deverá conter um capítulo específico demostrando os motivos pelo qual o referido precedente não será mais utilizado, as razões do abandono do precedente e os motivos da nova orientação”. 

Aliás, não só o artigo 489 CPC demonstra esse objetivo, mas o sistema processual novo, com vistas a conferir maior segurança jurídica e estabilidade à sociedade, como se observa a partir da leitura dos artigos 926 e 927 do CPC. Note-se que “o dever de uniformização da jurisprudência está previsto no art. 926 do CPC” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 02). Ao analisar o artigo 926, Mitidieiro (2015, p. 03) alerta:

 

Embora inequivocamente bem intencionado, o dispositivo padece de cinco problemas teóricos. A uma, fala em tribunais indistintamente, sem atentar que existe uma divisão de trabalho bastante clara entre as Cortes de Justiça e as Cortes Supremas no ordenamento jurídico brasileiro. A duas, institui um dever de uniformização, nada obstante seja conhecida a ligação do termo a uma função de simples controle que era exercida pelas cortes de vértice em um determinado momento da história. A três, alude genericamente à jurisprudência, sem se preocupar com eventuais distinções que podem existir entre os termos jurisprudência, súmula e precedentes, empregados igualmente em seus parágrafos. A quatro, refere que os tribunais têm o dever de manter a jurisprudência estável, quando na verdade esse é apenas um dos seus deveres no que tange à necessidade de prover segurança jurídica. A cinco, endossa uma proposta teórica bastante específica a respeito do conceito de direito ao determinar que a jurisprudência deva ser íntegra.

 

Da mesma forma, o art. 927 busca trazer unidade na interpretação e na aplicação do direito, impedindo “decisões diferentes para casos iguais, o que torna o sistema jurídico inseguro e caótico” (PUGLIESE, 2016, p. 63). Aliás, “os juízes devem atentar aos entendimentos uniformizados dos tribunais superiores, porque estes são o resultado da função que lhes foi atribuída pela Constituição Federal” (CIMARDI, 2015, p. 83).

Tem-se, portanto, uma teoria que objetiva dar maior previsibilidade às decisões judiciais, bem como, consequentemente, aumentar a segurança jurídica do país, respeitando, ainda, o caráter tradicional do sistema da common law de desenvolvimento gradual e vinculação histórica dos entendimentos judiciais (BORGES, VANDRESSEN, 2015).

A nova legislação processual civil, além de aprimorar institutos existentes, criou novas técnicas que buscam a tão almejada “segurança jurídica”: o “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” (IRDR), previsto nos artigos 976 a 987, e o “Incidente de Assunção de Competência” (IAC), insculpido no artigo 947. Em suma: o novo CPC buscou trazer elementos e institutos que visam uniformizar a jurisprudência, trazendo, ainda, eficácia vinculante a certos provimentos, tais como o IRDR e os recursos repetitivos.

Entretanto, alertam Barbosa e Andreassa Júnior (2017, p. 12-13) que “a ideia de precedente é muito mais complexa do que afirma grande parte das pessoas e de forma alguma se assemelha às súmulas vinculantes e aos recursos repetitivos”. Para os autores, “o ‘sistema de precedentes’ no Brasil é, na realidade, uma falácia. Há um conjunto de provimentos vinculantes; nada mais que isso” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 12-13).

Abstraída a crítica extrema e a problemática das cortes supremas (ou não) e – em consequência – da existência de precedentes obrigatórios (ou não), devemos avaliar o sistema brasileiro sem desconhecer do seu hibridismo. De fato, “existem problemas estruturais e culturais que fazem com que a simples reforma das leis processuais não representem a solução de todos os problemas da chamada crise do Judiciário” (FARIA, 2012, p. 07). No entanto, a reforma nesse particular não pode ser tida como um regresso.

Seja como for, a visão negativa acima exposta efetivamente encontra embasamento, mas as críticas estão – salvo melhor juízo – mais ligadas à forma de atuação dos aplicadores (afinal, a cultura brasileira está vinculada muito fortemente ao civil law, logo à lei) do que propriamente aos institutos propriamente ditos. Como destaca Mancuso (2016, p. 614), “resta saber se o operador do Direito, no Brasil, afeiçoado ao trata da lei e dos meios de integração que ela mesma credencia para colmatar seus vazios (…) saberá lidar com categorias e técnicas forjadas ao longo da milenar trajetória do Direito operante nos países da família da common law”.

Evidentemente os institutos tem uma forte ligação ao sistema do common law e, por essa razão, para um melhor funcionamento, deveriam coadunar com sua essência originária. Esse fato traz problemáticas verificáveis em praticamente todos os institutos.

3 UMA BREVE RELEITURA CRÍTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS

O presente capítulo abordará inicialmente aspectos essenciais do instituto. Posteriormente fará alguns apontamentos críticos a partir do aporte teórico trazido no decorrer do artigo. A opção se dá a um porque os recursos repetitivos foram aperfeiçoados pelo novo CPC (maior completude), a dois porque o julgamento se dá no âmbito dos Tribunais Superiores. Destaca-se que a pretensão do artigo é demonstrar a importância de um estudo aprofundado dos elementos do common law para aprimorar os instrumentos processuais (aqui são levantados apenas questionamentos).

 

3.1 Considerações iniciais

 

Os recursos repetitivos representam instrumento importante para o sistema jurídico, porquanto sua essência revela a necessidade de uniformização da jurisprudência. O instituto estava previsto no artigo 543-B do CPC/73 e seus seis parágrafos (incluído pela Lei nº 11.418, de 2006) e no artigo 543-C do CPC/73 e seus oito parágrafos (incluído pela Lei nº 11.672, de 2008). O novo CPC/15, porém, unificou o procedimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Conforme o caput do artigo 1.036, o fundamento dos recursos reside na idêntica questão de direito. Ou seja, “o recurso repetitivo é, realmente, um recurso em que se ‘julga questão’” (MARINONI, MITIDIERO, 2016, p. 294). Com efeito, “a técnica do recurso repetitivo se destina à solução de uma questão presente em vários recursos e não simplesmente de um dos recursos que sem repetem” (MARINONI, MITIDIERO, 2016, p. 293).

Como já visto, os direitos repetitivos refletem a litigiosidade da sociedade contemporânea. Assim, os direitos repetitivos são resultados da intensa massificação de demandas: “milhares de indivíduos movem processos judiciais distintos que tratam dos mesmos assuntos” (WURMBAUER JUNIOR, 2016, p. 36). Convém lembrar que “não só é o Poder Judiciário que padece dos males das demandas repetitivas e de massa, eis que também o titular do direito é vitimado” (WURMBAUER JUNIOR, 2016, p. 38).

Mas, o que são demandas repetitivas? A doutrina salienta que “as demandas repetitivas têm fundamento em situações jurídicas homogêneas, mas possuem um perfil que não permite circunscrevê-las aos direitos individuais homogêneos” (WURMBAUER JUNIOR, 2016, p. 37). 

Ou seja, “os processos que versam sobre os conflitos massificados lidam com conflitos cujos elementos objetivos (causa de pedir e pedido) se assemelham mas não chegam a se identificar” (BASTOS, 2010, p. 90). Porém, “importante destacar que as questões reputadas idênticas devem ser exclusivamente de direito. Questões fáticas não devem interferir na afetação da matéria” (FARIA, 2012, p. 03). 

Marinoni e Mitidiero sintetizam o procedimento em cinco passos: 

 

  1. i) seleção de recursos fundados em idêntica controvérsia de direito (art. 1.036, CPC/2015); ii) afetação da questão como repetitiva (art. 1.037, CPC); iii) instrução da controvérsia (art. 1.038, CPC/2015); iv) decisão da questão repetida (art. 1.038, §3º, CPC/2015); e v) irradiação dos efeitos para os casos repetidos (arts 1.039 a 1.041, CPC/2015) (MARINONI, MITIDIERO, 2016, p. 291).

 

A eficácia vinculante dos recursos repetitivos é indução lógica do disposto no inciso II do artigo 1.037 do CPC, segundo qual será “determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”. Ora, se todos os processos que versem sobre a questão delimitada são suspensos, parece evidente a existência de eficácia vinculante. Mais adiante, salienta o diploma processual que “decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada” (art. 1.039, CPC). Portanto, forma-se um paradigma.

Para Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 06), “não é o filtro da ‘repercussão geral’ que confere a força de precedente ao decidido pelo STF nos recursos extraordinários repetitivos; é, isto sim, a função institucional, que a Constituição confere àquela Corte, de guardião da Constituição”. Da mesma forma, “o STJ, por via do recurso especial, desempenha, na esfera do direito infraconstitucional, missão igual à do STF, qual seja a de tutelar a lei federal e garantir a unidade do direito positivo” (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 07).

Seja como for, não se tem a pretensão de exaurir o procedimento, tampouco explicar o funcionamento (teoricamente ou empiricamente), mas sim, a partir de um panorama geral, trazer questionamentos com base na experiência do common law

 

3.2 Breves apontamentos críticos

 

O artigo 1.037, inciso I, do novo CPC destaca que “selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual: I – identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento”.

No particular reside a primeira crítica: qual é o “método de escolha do recurso especial que servirá de paradigma para os demais casos, isto é, qual o critério adotado pelo STJ na subida do recurso?” (ANDREASSA JUNIOR, 2013, p. 09). A questão do critério é importantíssima, porquanto é dos recursos selecionados que se terá a tese firmada. Uma má seleção poderá engessar o sistema, firmando uma tese equivocada. 

Ademais, salienta Marinoni e Mitidiero (2016, p. 294):

 

O problema é que o delineamento da questão depende do caso concreto e, assim, é preciso evitar a confusão entre questão e fundamento, mediante a consideração dos próprios casos que dão origem ao recurso repetitivo. Se os recursos especiais dependem da solução de questão que abarca dois ou mais fundamentos, não é possível pretender discutir os fundamentos como se fossem questões em sede de recurso repetitivo (MARINONI, MITIDIERO, 2016, p. 294).

 

Em outras palavras: como se dará a solução das outras questões de recursos especiais afetados? E outra: como se julgará questões em separado se uma depender da outra? Isso não diferenciaria os recursos?

Ademais, verificável que o novo CPC prevê que “somente podem ser selecionados recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida” (art. 1.036, § 6o, CPC). Percebe-se que a pretensão do Legislador é de selecionar recursos com ampla argumentação. Almeja, pois, que haja o maior número de fundamentos para se firmar a tese com maior segurança.

Conjuntamente, havia regra dispondo sobre a obrigatoriedade de análise de todos os fundamentos. Todavia, “infelizmente, foi revogada pela Lei 13.256/2016 a regra do art. 1.038, §3º, a que dispunha que o conteúdo do acórdão deveria abranger a análise de todos os fundamentos suscitados, favoráveis ou contrários” (WURMBAUER JUNIOR, 2016, p. 159).

De todo modo, convém lembrar que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (art. 489, § 1o, IV, CPC).

Ao que tudo indica, essas normas tem o condão de estabelecer um maior campo de incidência à decisão. No momento em que o julgamento do recurso repetitivo – para chegar a uma tese – examina diversos fundamentos, não se pode alegar a distinção de caso de maneira facilitada. Aliás, a lei processual prevê o distinguishing, nos parágrafos 9º ao 13 do artigo 1.037.

Porém, como leciona a doutrina, “por meio do distinguishing, opera-se profunda cognição e pesquisa entre o caso posto em exame e os anteriores, para se averiguar se a situação fática-jurídica é diversa ou similar à anteriormente decidida” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 17). 

O recurso repetitivo, como visto, pretende apenas decidir a questão. Nesse sentido, delimitando apenas questões, sem a contextualização do caso e dos fatores determinantes, da ratio decidendi (que demandam análise de fatos), como se fará o correto distinguishing? Com efeito, averiguar se a situação fático-jurídica do caso paradigma (que gera o precedente) é igual para efeitos de aplicação ao novo caso, demanda uma análise mais aprofundada do que se vê usualmente. 

Nessa senda, como avaliar a distinção do caso no âmbito dos Tribunais Superiores se é vedada a análise de fatos? Segundo Barbosa e Andreassa Júnior (2017, p. 14), “outro fator que deveria ser revisto pelo Judiciário é a impossibilidade de se discutir matéria fática nos tribunais superiores. Ora, para que se tenha por base um precedente, é necessário analisar se os fatos possuem estrita relação”. Essas são questões que ficam em aberto e merecem uma melhor análise.

Não bastasse tudo isso, “o NCPC, a inserir o sistema de precedentes em nosso direito processual civil, o fez a partir do mecanismo da identificação da tese e não do caso” (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 09). Ou seja, o precedente gerado no recurso repetitivo está em uma espécie de “banco de teses” em que simplesmente se delimita a questão abordada de forma genérica e firma uma tese (praticamente uma “norma” a respeito). 

Isso revela a cultura civilista. Muito embora os aplicadores – em vez de perguntar “qual lei regula tal aspecto” – perguntarem “qual a visão do Tribunal a respeito”, não significa necessariamente mudança de cultura, pelo contrário. Busca-se apenas a “ementa” ou o teor da “súmula”: procura-se, pois, a “lei” do Tribunal. O aplicador é seduzido pela facilidade.

Todavia essa opção pode constituir-se verdadeira armadilha para o Direito, até porque os “efeitos mágicos de produção em série e velozes contracenam com o descompromisso, a ausência de responsabilidade do sujeito que assina” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 13). Não raramente se vê a produção de jurisprudência dominante a partir de casos que não possuem relação direta com o seu. A cópia manual de ementas e súmulas é um perigo do sistema híbrido que se propõe.

Para Délio Mota de Oliveira Júnior (2017, p. 12): 

 

O precedente judicial é um texto a ser interpretado pelo juiz do caso concreto posterior. O aplicador do direito, além de interpretar o precedente judicial para identificar a sua ratio decidendi, deve analisá-lo para verificar se as circunstâncias fáticas entre a decisão paradigma e caso concreto são semelhantes a ponto de justificar a aplicação da tese jurídica formada no precedente judicial. 

 

Como se vê, a aplicação do precedente depende da verificação de sua ratio decidendi. Aliás, essa constitui elemento do precedente, de modo que, “para evitar dúvidas, é altamente recomendável que os Tribunais explicitem, de modo mais claro, direto e objetivo possível, a ratio decidendi, isto é, a tese jurídica afirmada no julgamento” (CAMBI, HAAS, SCHMITZ, 2017, p. 17).

Portanto, ao Tribunal firmar simplesmente uma tese, não define em um primeiro plano qual é a ratio decidendi, o que implica os seguintes problemas: (1) aferição da distinção (tópico anterior), (2) proliferação equivocada do precedente e (3) indefinição quanto à extensão do julgado.

Além disso, é verificável que os tribunais superiores não decidem como instituição, sendo muitas vezes as decisões uma soma de opiniões. Aliás, “mesmo em decisões consensuais, percebe-se a ausência de uma ratio decidendi da Corte” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 13). 

Isso se verifica no julgamento da ADPF nº 54, que admitiu o aborto em caso de anencefalia. Todos os ministros apresentaram suas opiniões a respeito do tema (as vezes até mesmo religiosa e desvinculada do Direito, como se legisladores fossem), trazendo teses diversas: não se sabe ao certo qual foi o motivo determinante para a conclusão atingida. Não é suficiente saber a tese, a ementa, a ratio também é elemento imprescindível, até para se verificar qual voto sobrepõe (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 12). Novamente, observa-se uma problemática relacionada à cultura, ao modo de aplicação do Direito.

Outra crítica que se faz está relacionada à possibilidade de engessamento do sistema jurídico: “se os tribunais devem rejeitar liminarmente os recursos que possuem temas já julgados em recurso repetitivo, para quem se deve pleitear o overrruling?” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 11). 

Com efeito, o legislador “continuou impedindo o jurisdicionado de ver suas razões recursais analisadas pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que é quem, em tese, possui legitimidade para alterar seus precedentes” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 11). Em outras palavras: quem possui legitimidade para rever a tese? Podem os tribunais sustentar o overruling de tese firmada por Tribunal Superior?

Convém salientar, ainda, que “pode ocorrer de não ser oportuna – ou necessária – a revogação total do precedente. Nesses casos, para patrocinar em parte a sua alteração (overturning) alça-se mão das figuras da transformação (transformation) e da reescrita (overriding)” (MITIDIERO, 2015, p. 10). Ou seja, há a existência de técnicas de superação parcial do precedente. De fato, “todas essas técnicas, embora não previstas expressamente, podem colaborar para a formação de um caldo de cultura técnico favorável à aplicação dos precedentes entre nós” (MITIDIERO, 2015, p. 10-11).

Em resumo, mesmo com reformas positivas, o Poder Judiciário brasileiro ainda é alvo de críticas. A solução para o problema é pensar “a adaptação de um sistema misto unificando o civil law à verdadeira teoria dos precedentes” (BARBOSA, ANDREASSA JUNIOR, 2017, p. 14). Ou seja, devemos pensar os institutos, dentre os quais os recursos repetitivos, com olhos mais atentos aos elementos do common law.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Atualmente no mundo ocidental o common law e o civil law são os maiores sistemas jurídicos. De diferentes formas, ambos visam a garantia da segurança jurídica. Com efeito, a segurança jurídica é um princípio estruturante no Direito, de modo que, tanto no common law quanto no civil law, os seus valores são almejados. Enquanto o common law busca a segurança jurídica a partir da aplicação das decisões dos casos concretos já julgados aos casos futuro, no civil law a segurança jurídica representa-se pelo produto da atuação do parlamento (por normas positivadas).

O Brasil adotou – ao menos em tese – o sistema da civil law. Entretanto, em especial após a edição do novo código de processo civil (Lei 13.105/15) é possível perceber, claramente, uma tentativa de superar a “cultura do código”, porquanto boa parte das inovações trazidas, dizem respeito à adoção de institutos inspirados na experiência da common law. Com efeito, a intensificação do contencioso no Brasil, a massificação de demandas, tem gerado uma verdadeira insegurança jurídica, porquanto, para o mesmo problema, se tem decisões diversas. Busca-se, pois, uma teoria que proporcione maior previsibilidade às decisões judiciais. Todavia, os institutos tem uma forte ligação ao sistema do common law, especialmente. Por essa razão, para um melhor funcionamento, deveriam coadunar com sua essência originária. Esse fato traz problemáticas verificáveis em praticamente todos os institutos. 

Nesse panorama, o primeiro capítulo avaliou a importância da segurança jurídica, perpassando, ainda, uma análise histórica dos dois principais sistemas jurídicos do mundo ocidental. Estabeleceu-se, ainda, a essência defendida. Posteriormente, numa segunda parte, a partir dessa aproximação dos sistemas no Brasil, foram traçadas as justificativas para esse “fenômeno” e explicou-se, sucintamente, a nova ordem processual brasileira. Demonstrou-se o panorama do novo CPC, bem como críticas. No terceiro capítulo, a partir da análise dos recursos repetitivos, percebeu-se algumas problemáticas da utilização de um sistema de common law em um país com tradição na civil law. 

Ao final concluiu-se que a solução está na adaptação do sistema à verdadeira teoria dos precedentes do common law, respeitando ao máximo os seus elementos característicos, o que envolve, outrossim, a necessidade de um maior estudo analítico e uma mudança de cultura. 

 

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