Discurso de Aposentadoria

#01 - MARÇO 2023

Numa das ocasiões em que fui honrado pela confiança dos meus pares para falar em nome do Tribunal, tive a oportunidade de dizer que “ninguém foge do seu destino” e eu, certamente, nunca consegui desviar-me dos destinos a que fui conduzido pela vida, algumas vezes de modo surpreendente e muitas outras até contra a minha vontade.

 

Assim foi que – lembro-me como se fosse hoje – tendo concluído o ginásio, lá pelos idos de 1964, me vi de frente com o primeiro grande dilema da minha existência: o “científico” das ciências exatas, para as quais não tinha a menor inclinação, ou o “clássico” das chamadas humanidades – línguas, história, filosofia – que me atraiam muito mais, especialmente porque me mantinham distante da terrível matemática, que freqüentemente atrapalhara a indescritível felicidade dos meus luminosos dias de guri, no velho e querido colégio Rosário, da avenida Independência. Que saudade daquele tempo!

 

A opção natural, quase óbvia, seria, portanto, o curso clássico, mas essa escolha implicava um outro problema, muito maior e mais sério do que o primeiro: o que fazer depois? Que carreira seguir? Que profissão abraçar? As chances concretas de ir adiante, com a formação adquirida no clássico, ficavam praticamente limitadas à Faculdade de Letras e à Faculdade de Direito – e nunca me havia passado pela cabeça ser professor nem, muito menos, ser advogado. Até porque – lembro também como se fosse hoje – ao discutirmos a tormentosa questão em família, minha mãe, com aquela franqueza contundente que lhe era peculiar, prontamente saiu-se com essa: “Esse menino vai morrer de fome: professor ganha uma miséria; e um advogado tem que ser simpático, popular, bom orador e ele – no caso eu – não é nada disso: ele não cumprimenta ninguém, está sempre de mau humor, tem vergonha de falar em público. Não vai dar certo”. A solução – como sempre – veio do pai, que interveio, com aquela simplicidade tranqüila que lhe é característica: “Mas ele pode ser juiz”. 

 

Provavelmente, ele nem deve se lembrar desse episódio. Mas aquela frase salvadora, talvez dita apenas para encerrar um debate que já ia se tornando desagradável, deu-me a segurança necessária para a decisão irreversível, que veio a traçar definitivamente os rumos da minha trajetória. A angústia juvenil diante do futuro desconhecido cedeu lugar a uma clara e serena certeza: se tudo desse errado, ainda me restaria “ser juiz”. E o melhor dessa alternativa providencial era que eu não precisaria depender de simpatia, nem de popularidade, nem de eloqüência, nem de quem quer que seja – só de mim mesmo, do meu esforço pessoal, do meu empenho, da minha vontade de vencer e essas virtudes, felizmente, nunca me faltaram: guardei a carta na manga.  

 

Fiz o clássico, entrei na Faculdade de Direito e terminei sendo, como todos sabem, advogado, professor e, mais tarde, juiz – mas até chegar lá, muita água passou por debaixo da ponte.

 

O curso de Direito, no início, não me deu quase nenhum motivo para entusiasmo. Tendo, porém, perfeita consciência de que a sorte estava lançada procurei, apesar do desconforto, dedicar-me zelosamente aos estudos, pois sabia que havia tomado um caminho sem retorno: todas as minhas fichas tinham sido apostadas naquela jogada e não havia como voltar atrás.

 

Lá pelo terceiro ano da faculdade, contudo, as coisas começaram a mudar: por iniciativa própria, passei a freqüentar o modesto escritório de advocacia que o pai – Delegado de Polícia aposentado – montara na vizinha cidade de Canoas e ali, subitamente dominado por uma irreprimível vontade de aprender, ficava horas e horas lendo, prestando atenção em tudo, relacionando a teoria com a prática, vivendo, enfim, uma experiência absolutamente nova, que a cada dia ia se revelando mais interessante, mais instigante e mais desafiadora. O Direito já não parecia apenas aquela monótona repetição de fórmulas abstratas, decoradas em aulas tediosas, mas se mostrava como uma realidade palpitante, pronta para a descoberta, provocando a minha curiosidade insaciável. Logo em seguida já me sentia apto para rascunhar as minhas primeiras petições e fui me envolvendo de tal forma na rotina do escritório que, quando vi, já era um verdadeiro advogado completamente mergulhado na atividade profissional. A hipótese de “ser juiz” ficou totalmente afastada das minhas cogitações. 

 

Aprendi muito naquele pequeno e simples escritório de advocacia, onde foram plantadas as bases de quase tudo o que pude realizar depois na vida. Ali, tive contato direto com a mais diversificada gama de experiências forenses, desde o júri – fiz mais de um ainda como acadêmico – até coisas estranhas de que talvez muitos nem tenham sequer ouvido falar, como “casamento nuncupativo” e “legitimação adotiva”, o que me garantiu uma enorme vantagem quando, alguns anos mais tarde, resolvi colocar à prova os meus conhecimentos jurídicos. 

 

Colei o grau de bacharel em Direito com 23 anos de idade e, a despeito das previsões pessimistas, modéstia à parte, em muito pouco tempo tornei-me um advogado de bastante sucesso. Tudo corria às mil maravilhas, mas tinha uma coisa que começara a me incomodar: como seria o amanhã? Gostava muito da advocacia, mas tudo continuaria sempre tão bem como vinha sendo? Que turbulências poderiam estar me esperando no dia seguinte? 

 

Essas preocupações – talvez prematuras para quem mal se iniciava numa profissão de longo prazo como a advocacia –  levaram-me a procurar um porto seguro: submeti-me, então,  a dois concursos públicos, um para Juiz de Direito e outro para o Ministério Público Federal. E faltava apenas cumprir a prova oral do concurso para a magistratura estadual – onde obtivera o primeiro lugar nas provas escritas – quando veio o resultado do concurso federal: mesmo despencando do terceiro lugar, que havia alcançado nas provas escritas e na prova oral, por falta pontuação na prova de títulos, terminei aprovado em sétimo lugar na classificação geral, assegurando, assim, apesar dos pesares, a única vaga existente no Rio Grande do Sul. 

 

Surge, aí, um novo dilema: o Judiciário ou o Ministério Público? Era março de 1975, estava com 26 anos e, das carreiras jurídicas, a mais cobiçada na época era a da Procuradoria da República, exatamente porque não impedia para o exercício paralelo advocacia privada, prerrogativa que me permitiria continuar trabalhando com o pai no escritório de Canoas. Optei pelo Ministério Público Federal e nunca me arrependi dessa atitude. Ainda não tinha chegado a hora de “ser juiz”.

 

Comecei reservando a parte da manhã para a advocacia e, à tarde, entregava-me febrilmente à atividade ministerial – que incluía, naquela época, a defesa judicial da União. Os anos foram passando, as manhãs diminuindo, as tardes se alongando, até que um dia – inteiramente vencido pelo fascínio irresistível daquela gloriosa instituição, a que servi, com imenso orgulho e extraordinário prazer, por quase 20 anos – decidi abandonar a advocacia para dedicar-me com exclusividade e integralmente ao Ministério Público Federal. 

 

Vivi intensamente a carreira ministerial, fiz de tudo na Procuradoria da República, exerci absolutamente todas as possíveis funções do cargo – exceto a de Procurador Geral: fui do Conselho Penitenciário, fui Procurador Regional Eleitoral, fui chefe da Procuradoria da República, fui chefe da Procuradoria Regional da República, fui Subprocurador-Geral da República, participei  vivamente da política corporativa, ajudei a construir a Associação Nacional dos Procuradores da República, lutei pela Instituição nos trabalhos da Constituinte, trabalhei diretamente na elaboração da Lei Orgânica do Ministério Público da União, chegando mesmo a escrever de próprio punho vários dispositivos que nela foram incorporados – enfim, foi uma longa, agitada e gratificante carreira, que certo dia, depois de mil peripécias que o tempo não me permite contar aqui, colocou-me de novo frente a frente com o velho e persistente dilema: o Ministério Público ou a Magistratura? 

 

Dessa vez, não consegui refrear o apelo que vinha reprimindo e retardando, como visto, por mais de 20 anos: finalmente chegara a hora e me senti pronto para “ser juiz”, cedendo a uma vocação que ficara contida talvez por tempo demasiado, mas viera crescendo até se tornar irresistível e inadiável. Novamente, posso dizer, com absoluta certeza, que nunca me arrependi da escolha feita, no momento certo. Ou não terá havido escolha nenhuma, tudo terá sido pacientemente engendrado pela mão invisível do destino, cujos desígnios, como visto, cedo ou tarde, inexoravelmente acabam se realizando?

 

  Sei lá, talvez tudo já estivesse escrito, desde o começo, mas o fato é que, embora com algum atraso, acabei assumindo a magistratura pela via direta do chamado “quinto constitucional”, no cumprimento de uma missão que a Lei Maior reserva aos membros do Ministério Público, atribuindo-lhes, bem como à honrada classe dos Advogados, uma vaga em cada cinco nos tribunais de segundo grau. Se pudesse ampliaria o percentual, como disse certa vez em voto nesta Casa, porque hoje, mais do que nunca, estou firme e definitivamente convencido da sutil sabedoria que inspira esse notável mandamento constitucional – a forma mais eficaz de implantar, sem traumas, o reclamado “controle externo do Judiciário, por dentro”, garantindo, ao mesmo tempo, a pluralidade democrática, a experiência diversificada e a participação efetiva de todos os segmentos da comunidade forense na composição dos tribunais brasileiros, sem o risco de ingerências espúrias, que comprometeriam fatalmente a imprescindível independência do Poder.

Mas isso é assunto para outra conversa. 

 

“Ninguém foge do seu destino” e o meu destino, afinal, parece que era mesmo “ser juiz”.

 

Missão cumprida, deixo o Tribunal, passo a perseguir novos horizontes.

 

Comovido pelas manifestações de amizade e carinho, só o que me cabe, agora, é prestar contas, pois sempre entendi que a solenidade tradicionalmente reservada pelos tribunais à despedida dos seus membros tem um significado muito maior do que a simples homenagem protocolar oferecida ao juiz que se retira. Ela encerra e oculta, na sua aparência festiva, um verdadeiro e inegável ato de julgamento: consciente ou inconscientemente, nesta hora, todos julgam o juiz que se afasta – inclusive ele a si mesmo.

 

Se assim é, devo afirmar que aqui pude alcançar a plenitude da minha realização profissional; dei o melhor dos meus esforços e, principalmente, procurei ser um bom juiz, vivendo na íntegra – sempre ao meu modo – todas as recomendações que uma vez me permiti fazer, em nome do tribunal, aos jovens que ingressavam na admirável carreira da magistratura: “ser juiz não é deter um cargo, é cumprir um encargo; ser juiz não é desempenhar uma profissão, é exercitar uma vocação; ser juiz é observar e fazer observar, com independência, serenidade e exatidão todas as disposições legais, mesmo aquelas contrárias ao seu interesse particular; ser juiz é tratar com urbanidade as partes, o Ministério Público, os advogados e os servidores, inclusive aqueles que não gozam de simpatia pessoal; ser juiz é manter conduta irrepreensível, tanto na vida pública quanto na vida privada, mesmo à custa de renúncias e sacrifícios; ser juiz não é só resistir ao assédio da corrupção, mas também prestar jurisdição com a necessária presteza, porque ‘justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta’; ser juiz é exercer autoridade, sem esconder-se atrás da carranca antipática da prepotência; ser juiz é dar exemplo de compostura, no agir, no falar, no vestir; ser juiz, enfim, é buscar a justiça, porque “a injustiça envenena, mesmo em doses homeopáticas”. Muitos talvez se lembrem dessa preleção, que encerrei declarando: “bendito aquele que tem a humildade necessária para compreender e aceitar essas verdades, porque os sábios são humildes e o que mais se espera dos juízes é que sejam sábios – não que saibam muito, mas que julguem com sabedoria”.

 

Fiz tudo o que estava ao meu alcance, repito, para ser assim e se mais não fiz foi porque mais não pude. Espero ter conseguido algum êxito nesse intento: não apenas “ser juiz”, mas principalmente sem um “bom juiz”. Aguardo sereno, com a consciência do dever cumprido, um veredicto favorável: já não tenho jurisdição, entretanto; já não me compete a palavra final. 

 

O que me incumbe, sim, nesta hora, é agradecer, do fundo do coração, em primeiro lugar, ao bom Deus de todos nós por me haver concedido a dádiva insuperável de “ser juiz”, dando-me forças para ultrapassar todos os obstáculos, mesmo quando pareciam invencíveis, e para levantar depois de todos os tropeços, mesmo quando pareciam irreversíveis – embora hoje todos os obstáculos e todos os tropeços me pareçam tão irrelevantes no conjunto, que nem lembrança merecem.

 

Agradecer também à minha amada mãe, que lá dos céus continua inspirando as minhas decisões e orientando os meus passos, em todos os momentos, pelas lições inesquecíveis de uma vida tão precocemente ceifada, que tanto e tão definitivamente marcaram a formação da minha personalidade;

 

Agradecer ao meu querido pai, pela amizade de todas as horas, pelo amparo e pelo estímulo que nunca deixou faltar, mesmo nas circunstâncias mais difíceis – e não foram poucas – pelos incontáveis exemplos de dignidade e retidão forjados numa existência que já se estende por 91 anos e que, se Deus quiser, certamente ainda vai muito longe;

 

Agradecer à minha mulher, Leda, amiga, amante, conselheira, parceira na alegria e na tristeza, nos bons e nos maus momentos, nas vitórias e nas derrotas, nessa caminhada que arriscamos empreender juntos há 25 anos, pela certeza de um amor sempre renovado; 

 

Agradecer aos meus filhos – Max, Igor, Daniela, Lia e Saulo – amores supremos da minha alma, razão de todas as minhas lutas, amigos incondicionais, depositários de todas as minhas esperanças, pelas alegrias, pelas preocupações, pelas conquistas, pelas atribulações, por tudo, enfim, o que dá sentido e importância à minha vida; 

 

Agradecer à minha amada família – irmã, tios, primos, sobrinhos, cunhados – refúgio certo em todas as tempestades e em qualquer emergência;

 

Agradecer aos amigos de infância (Luís, Zé, Walter), aos amigos da juventude (Hugo, Jorge, Zé Maria), aos amigos da maturidade (Zé, Beto), todos sempre ao meu lado, a vida inteira, como se o tempo nunca passasse: ainda parece que somos “a turma da zona”; mesmo sem o vigor de ontem, ainda somos “os atletas do vôlei” de tantas e tão gloriosas jornadas; ainda somos os “parceiros do tênis” –  parece que nada mudou e é muito bom poder contar com vocês, em quaisquer circunstâncias;

 

Agradecer os meus queridos colegas da inolvidável Faculdade de Direito (Caminha, Vanderlei, Antônio e Manteli), todos sempre junto comigo, em todos os momentos, em todas as estações da longa marcha, que já se estende por mais de 30 anos;

Agradecer os estimados colegas da velha Procuradoria da República (Chico, Jaime, Duarte, Leiria, Hector, Lucindo, a Vera, a Irene, o Falcão, a Luíza, a Ellen, o Germano) companheiros de tantas aventuras, pela amizade que os anos só fortaleceram e tornaram imperecível;

 

Agradecer os exemplares e insubstituíveis servidores do meu antigo gabinete (os amigos Manira, João, Alexandre, Gustavo, Rosane, Lia, Carlos, Amélia, Athos, Paulo) pela colaboração inestimável, sem a qual teria sido virtualmente impossível dar conta da desumana carga de trabalho, que a todos é imposta neste tribunal;

 

Agradecer os servidores do Tribunal, desde o mais humilde até o mais graduado – as copeiras, os seguranças, as taquigrafas, os assessores – todos sempre tão atenciosos, tão simpáticos, tão dedicados, tão competentes, todos sempre prontos e corretos no cumprimento do dever;

 

Agradecer, por fim e especialmente, a todos os meus notáveis colegas Desembargadores Federais deste egrégio Tribunal Regional Federal, inclusive os que já desfrutam da merecida aposentadoria – juízes de virtudes insuperáveis, pela amizade, pelos conselhos, pelo apoio com que me distinguiram em todos esses anos de convivência fraterna, tornando menos árdua a labuta diária, no cumprimento da espinhosa missão de distribuir justiça.

 

Sei que deixei de referir expressamente muitos outros nomes merecedores da minha eterna gratidão: peço-lhes, humildemente, que me perdoem. Como sempre, preferi errar por esquecimento, não pecar por omissão. 

 

É chegada a hora de encerrar estas singelas palavras, que já se entenderam além da conta, desejando a todos, muita saúde e felicidade: que Deus os acompanhe, guarde e ilumine. 

 

A todos, do fundo do coração, muito obrigado.